Sinto me dividida, em duas, em três ou mais. Me puxo quando estou quase à direita, volto me ao centro, mais alguns instantes e me puxo novamente quando estou desbravando a esquerda. Vou pra frente, corro para trás. Estou disforme, atônita, cansada e feroz.
Essas músicas não me contemplam, esses olhares me invadem, meu corpo está perceptível a mim, incômodo. Cheguei ao centro, forçada por mim mesma. Mantenho-me em silêncio, carrancuda, com medo.
Não quero que eles me toquem, sinto repulsa ao esbarrar em um corpo masculino.
Ainda trago a sensação de estar traindo a mim mesma por sentir-me assim, não foi isso que fui ensinada a ser. (Esse sentimento muda um dia?)
O prazer e a dor nunca estiveram tão próximos e conectados.
Me preencho numa cirurgia animalesca, não há sedativos capazes de eliminar a sensação.
A gorda está desperta, há um disparate entre mim e ela, e já sinto-me esvaindo para que ela tome seu lugar. (Tome-me pra si, gorda!)
A lésbica, junto a gorda, está me tomando cada pedacinho. Não consigo mais tirá-las daqui, em um misto de angústia e desespero eu as abraço.
Se não posso mais escondê-las então que elas me tomem o corpo e me envolvam de luta.
A mulher que sou não se caracteriza mais pelas saias rodadas ou pelas pérolas que vovó me ensinou a ornar, quem dera eu pudesse dizer a ela que a ensinaria a arte das letras em gratidão por ter sido um dos elos da resistência feminina de nossa genealogia.
Não ensinei minha avó a ler e escrever, tão pouco me tornei professora como assim ela sonhava pra si. Vovó morreu com as mãos calejadas da enxada e queimaduras do fogão. E ela tinha medo do escuro, assim como eu... Ela sabia que corria risco no escuro, assim como eu.
Vovó morreu gorda, violada, abusada, cansada e com o ventre marcado por cinco gestações enlutadas.
Nutro hoje a saudade extenuante e culpabilizadora por não ter sido companheira dela. Hoje, busco em cada olhar feminino o elo que vai nos unir.
E nutro o ódio, o vergonhoso ódio da menina que nasceu pra amar, o vergonhoso asco da menina que nasceu pra ser doce, que carrega em seu nome o Rosa, esse nome tão lindo que violentou minhas ancestrais.
Estou absolutamente perdida, sentada ao meio fio, as memórias são muitas e nem pra todas estou pronta para deixar que emerjam.
Preciso de calma, de um abraço apertado, da ausência dos que me ocupam a mente no dia a dia.
Estou em negação e aceitação simultaneamente. Negando a mulher que me disseram que eu sou e aceitando aquela que, hoje, desabrocha, não mais como uma flor mas como uma serpente que invade a espinha dorsal.
Choro a solidão das lésbicas que se esconderam, choro a minha própria solidão das vezes que me nomeei gay, e num suspiro aliviado perdoo minha mãe por ter-me calado o gozo com humilhações e castigos. Ela esteve comigo bem mais do que alguém pode estar com ela.
Canto baixinho a canção de ninar que acalmou o coração alucinado da menina de sete anos que foi pra sala de terapia, pro centro espírita, pro terreiro de umbada, pra apometria, e alguns anos mais tarde pra psiquiatria.
Meu pânico de mim mesma , minha instabilidade, minha histeria.
Tudo tão meu, tudo tão cruel.
Cerro meus punhos quando ando por aí, sinto franqueza nos músculos e brutalidade nos pelos não mais mutilados, não sou de todo mulher, tampouco homem, menos ainda uma mistura ou uma variação de ambos, sou LÉSBICA. E isso meu organismo, minh'alma e eu ainda estamos descobrindo o que é.
Caminhos tortuosos para os pés sem calos de codificação trinta e nove.
Há muito pouco, do todo que fui, por aqui hoje, e há um oceano de tudo que ainda serei a minha frente.
(peço licença a mim mesma para, no desfazer e refazer de uma porção de coisas, ainda manter o rivotril)
sábado, 25 de abril de 2015
A Lésbica
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