segunda-feira, 27 de outubro de 2014

sobre a falta de cabelo

Desde que eu raspei a cabeça, hoje, pela primeira vez, eu me senti estranha. Não sorri ao meu olhar no espelho, tão pouco chorei. Estive imersa, analítica, observei cada pedacinho da Rafaela refletida. Vi-me emagrecida, crescida, sozinha, nua e sem cabelos. Nunca me imaginei assim, nunca me imaginei sozinha. Virei o rosto pra essa realidade uma porção de vezes, e optei mais um bocado delas não encarar-me de frente.
Aos vinte anos eu não me reconheceria se me encontrasse na rua como sou hoje. E aos vinte e dois eu não acreditaria se alguém me contasse que eu sobreviveria àquela dor. Não há nada de pleno em mim e em minha careca. Não há nenhum deslumbre, nenhuma fantasia, tão pouco me desfiz dos cabelos por estética.
À primeira mecha de cabelos cortada meu corpo se estremeceu todo, e em uma mistura de raiva e excitação, cortei todas as outras sem pensar, sem ritual algum, sem superestimar aquele ato. A raiva passou. Aí então eu lembrei que eu teria que sair à rua, que teria que ir à faculdade, ao trabalho, ao mercado, ao banco, ao inferno... E eu senti medo. 
Senti, pela primeira vez, medo de aparentar ser lésbica. A confusão se instaurou de forma absoluta! Afinal de contas, desde os quinze anos eu me relaciono com outras mulheres. Mas nesses nove anos, eu soube driblar e me esconder perfeitamente bem por detrás da minha pele branca, meus cabelos comuns, meus vestidos floridos, minha maquiagem e minhas unhas vermelhas. Sofri menos lesbofobia durante esse tempo todo do que recebo hoje.
Pois bem, Rafaela, não há como esconder a falta de cabelos e a ligação instantânea que os homens (em sua maioria) farão com sua orientação sexual! 
E mais surpreendentemente ainda, ao por os pés pra fora do meu reduto não me senti mal. Senti-me crescendo, inflando, me amando, mais e mais. Não foram poucas as piadas, os olhares, e até um “Isso é falta de rola!” eu ouvi. Não me abateu! Não me abateu entrar em contato com essa realidade que eu me esquivei por tanto tempo, essa realidade que lésbicas que desde a infancia fogem dos esteriótipos de feminilidade sofrem todo dia de forma muito mais agressiva. 
Tudo em mim cresceu, eu estive grande e forte, até o dia de hoje. 
E eu sabia que esse dia chegaria, eu sabia que hora ou outra eu entraria em crise. Não seria eu se não houvesse junto aos meus atos uma desconstrução severa, profunda.
Hoje eu senti falta do que eu era, hoje eu senti medo dos olhares atravessados, e movi o braço, instintivamente, no intuito de soltar os cachos.
Não estou arrependida, eu estou desconstruída. Não estou triste, eu estou me observando. Não estou querendo respostas, estou me fazendo perguntas.
E acima de tudo, eu não me sinto menos mulher! Sinto-me mais, e o mais que já pude sentir. Porque hoje eu estou consciente de todas as batalhas que enfrentamos todos os dias, de toda a força que temos e que nos é abafada, retraída. 
Sou consciente de toda essa competitividade que nos foi imposta, e de como é possível não alimentá-la mais até que ela suma.
Hoje eu sei que a minha existência é resistência, a cada segundo, e que às vezes vai dar vontade de desistir, de amolecer, e que não há nada de errado nisso, especialmente se tivermos umas as outras para que possamos baixar a guarda ,sabendo que temos companheiras que olharão por nós.
Às que me cercam, o meu muito obrigada.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Acalma...

Acalma coração.
A vida é assim , hora vai, hora volta,
Hora nem o passar das horas faz ir ou voltar.
Eu chorei por uma vida inteira, e não pedi, uma só vez, que Deus me arrancasse essa dor.
Estivemos no vão do mundo, naquele espaço entre o tudo e o nada, e eu mantive-me olhando para frente, firme e despedaçada.
Você pode sentir o arrepio que me causa olhar nos teus olhos?
Pode imaginar os caminhos tortos que percorri até que eu pudesse sentir, da forma mais honesta, essa solidão?
Eu procurei a lua pelo céu que me acompanhou por todo percurso até em casa, procurei-a com todo o meu desejo, pra que esse latejo que sinto na alma não me furtasse o ar.
De nada adiantou, você não voltou, não me olhou, não me tocou, e eu não mergulhei na vontade derradeira.
Segurei, derramei e escorri, e você não percebeu que enquanto caminhávamos pelo asfalto quente, eu,derretida, fui ficando para trás. 
Ah, e tão pouco de mim chegou em casa que todos os cômodos se fizeram grandes demais.
Gritei, pequena, no eco do mundo.
De tão tola que sou,quase acreditei que essa felicidade fosse minha.

domingo, 5 de outubro de 2014

Leve

Já são vinte e quatro, e sinceramente, que diferença faz? Não derrubo por mais de dois meses essas crises de ansiedade, e de repente, tudo que estava tão bem desce correnteza abaixo.
Suspenda a queda livre! É coragem demais para uma garota tola que não consegue suportar dores carnais.
Eu não quero, não aguento e não suporto essa auto piedade, e não vejo esses olhos que vocês veem, tão de repente, eu me perco, em um corpo grande demais pro espaço que ocupo nesse quarto, e pequeno demais pra expansão dos meus pulmões e do meu coração.
E como um raio, numa queda absoluta, eu perco o chão, aquele chão que se encontrava ali, tão concreto e firme, sob meus pés. Já não existe mais, eu flutuo, e delicadamente, e tão delicadamente, eu não quero que haja qualquer delicadeza em meu corpo ou em meu modo de agir. Quero brutalizar, esfriar, me armar com as armas mais letais possíveis, e nada se faz, nada se solidifica.
Eu continuo aqui, subjetiva, abstrata, sensível, sentada na cama, com meus gatos. Nós choramos juntos, eu, meus gatos e minhas cobertas.
Eu não os deixo escolha, eu não sou muito mais do que um punhado de lagrimas, de drogas alopáticas e de sono.
Imagino-me correndo, para o horizonte, e por mais vezes do que costumo ou quero admitir, para os seus braços. Você está me enlouquecendo!
Estamos, nós duas, me enlouquecendo. Isso é pesado demais, isso é solitário demais, e eu quis por tantas vezes nas ultimas trinta e seis horas te contar sobre os clipes que eu criei com as novas musicas que eu tenho ouvido, e sobre como nos amamos nele, sobre como você me olha, e sobre como eu enlouqueço com os sussurros aos pés do ouvido.
Mas sabe qual é a real? Não haverá nada disso. E não é porque essas coisas são para meninas de treze anos, - sim, eu insisto nos treze!- e sim porque eu não quero que você estrague a delicadeza dos meus passos. Já basta que eu mesma o faça. Eu vou afastar-lhe de mim antes mesmo do que você imagina, e por algum tempo eu vou me fazer crer que você o fez por convicções próprias, mas eu vou atormentar tanto o conforto inconfortável do seu dia-a-dia morno, que você não poderá fazer outra coisa se não ir embora.
E quanto, e se – porque eu sempre acredito em uma reviravolta de filmes hollywoodianos – você for, leve consigo minhas palavras, minhas melodias, minhas insistências, e as inúmeras vezes que eu sorri tão sinceramente pra você, tantas delas sem que você estivesse fisicamente ao meu lado.
Leve consigo a mordida que eu quis dar no teu ombro e não consegui, leve o calor que invadiu meu peito quando você me pegou pelas mãos na escada rolante. Leve consigo a coragem que eu não tenho, a doçura que eu não tenho, e a sinceridade escrachada que eu sufoquei na garganta e nos olhos.
Eu sou - e digo com pouca propriedade - um ser cansativo, com asas quebradas e que nem sabe mesmo voar.
Eu tenho medo do escuro e da solidão, e nem ao menos conseguiria fazer uma trilha pra chegar em uma linda cachoeira, eu ouço músicas tristes, com letras românticas, numa língua estrangeira que muitas vezes eu nem sei o que quer dizer. Eu sou nostálgica e guardo coisas do passado, e eu sonho com o passado muito mais do que com o presente ou com um futuro qualquer. Eu sou incoerente, confusa, desabrigada de mim mesma, e eu às vezes faço qualquer coisa por um abraço quentinho. Eu sou um caos caloroso e eu abraçaria minha mãe muito mais vezes do que o faço. Eu sinto muitas saudades dela, e quando eu me sinto ameaçada eu penso no colo dela e nos meus cinco ou seis anos de idade.
Eu não posso ver velhinhos em apuros que eu choro, eu não posso ver crianças em apuros ou felizes demais, porque eu choro, e se eu vir um comercial de televisão, eu vou chorar. Que credibilidade eu tenho?
Eu não sei o quanto de mim sou eu e o quanto é uma tirana, que por vezes, machuca e magoa as pessoas que eu amo, ou que, no mínimo, eu não queria magoar.
Eu queria que você estivesse ao meu lado muito mais do que você se dispõe a estar, eu gostaria de poder te acariciar por uma noite inteira, e de acalmar seus monstros, eu gostaria de te amar. Mas eu não posso. Não posso ainda, não posso te amar sem sua permissão, porque eu me condicionei a achar que não devemos amar assim, sem um tempo mínimo pra isso, sem uma proximidade mínima e uma reciprocidade coerente. 
Mas posso te contar um segredo? Eu não acredito realmente nisso. Eu só tenho medo. Eu só tenho certeza de que não será o seu desejo, e que você irá embora, hora ou outra, levando consigo o meu mais recente olhar apaixonado.
Eu não aguento esse silencio, essa distancia, e eu serei tão nociva a mim por isso que não acho que posso não ser a você.

Eu não sou mais do que um soluço no meio da noite, e você é um lindo nascer do sol em uma manhã de primavera – pelas próximas duas ou três horas.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Louca, tão louca.

Minha cama me chama de louca, meus sapatos apertados me gritam: LOUCA!
O som estridente que sai de mim me diz mais uma vez que sou louca!
Carrego a ansiedade amarrada aos meus tornozelos, e a arrasto pesada como bolas de chumbo.
Amo ansiosamente, como com a fúria de quem ama, e enfureço-me com a passionalidade de quem morre de fome.
Durmo e acordo e lá está ela, me olhando de frente, aficionada, de olhos fundos, quase que hipnotizante. E essa ansiedade calada, robusta, tem mãos firmes, enquanto as minhas tremem como um pássaro ferido.
Por vezes me acalmo, assim que gozo. Quando, depois do estremecer agudo de todos os meus músculos, involuntariamente, eles se relaxam, e então, saio em êxtase do meu corpo aprisionador e flutuo sobre mim.
Mantenho-me calma e louca, pois ainda que a inebriação do orgasmo me anulem os olhos negros da ansiedade, ainda assim, a loucura não me sai. 
Essa, não me abandona, ela me pinta de vermelho-puta as unhas e os lábios, e me deixa nua, coberta apenas por pérolas de plástico. Aí então ardo, queimo, e carbonizo, e quase que instantaneamente choro. Derramo as lágrimas da minha mãe, e da mãe da minha mãe, e da mãe da mãe da minha mãe.
Sangro o vermelho-puta inoculo em meu ventre, e me escorre morno pelas pernas, e das unhas e das gengivas aos lábios. Não dói! Liberta-me! Purifica-me!
E antes que o sol se ponha, arranco meus pelos da pele, mutilo-me!
Não aceito meu jardim, cultivo flores fora de mim, nas peles das garotas que floreiam no asfalto.
E hoje, seis ou sete anos depois, ainda posso sentir aquela mão a tapar meu grito de socorro!
Eu não morreria aquela noite, nem mesmo morrerei agora, esta noite, mas não se veda o grito desesperado de uma mulher, meu caro, este implodirá!
Hoje, ainda grito! Meu surto é estridente, e até esperneio, mas não abro a boca mais que alguns centímetros...
Faço-os pelos olhos! Tempesteio-me ,querida, ao sabor da ventania!