Há não muito tempo atrás eu passava alguns longos
minutos, nunca menos que trinta, intercalando os mais diversos produtos
cosméticos no meu rosto. Hoje, quando olho no espelho e vejo a pele crua às
vezes me angustio. Quando os dias estão mais pesados eu até evito os reflexos.
Ainda não tinha tido tempo emocional para refletir sobre isso e sobre como me
sinto em relação às tantas mudanças de comportamento dos últimos meses. A única
certeza que carreguei nesse tempo é que não faz mais sentido esconder o que sou,
em cada detalhe, em todos os pormenores.
Dia desses
vi uma linda moça, com aquela clássica maquiagem básica: sem exageros, maçãs do
rosto rosadas e um ar 'saudável' e feliz. Fiquei pensativa e um pouco triste.
Pensei nas tantas vezes em que usei produtos em
ordem sistemática que prometiam em suas embalagens e fórmulas milagrosas que me
fariam parecer saudável e feliz. Eu queria tanto ser feliz, eu queria ter as
bochechas sempre rosadas e um olhar brilhante.
Meus olhos são pequenos e por isso eu seguia
tutoriais de como dar a impressão de que são maiores, como
"valoriza-los". Mas tanto quanto pequenos eles são sensíveis, por
isso passei anos tentando conter o ardor dos pequenos olhos castanhos. Isso
tudo me parecia tão normal que hoje me assusta profundamente.
Qual o real problema em ser o que se é naquele
momento? Qual o problema em parecer cansada quando se está cansada? Qual o
problema em ter os olhos tristes quando é necessário esconder a tristeza para
ser aceita em sociedade? E não simples e verdadeiramente aceita, mas aceita
dentro do processo de aprisionamento, dentro do padrão de se estar de acordo
com molde designado por um sistema agressor, violador, mutilador e que massacra
nossas reais identidades. Violamo-nos para não sermos marginalizadas por nossos
agressores.
Isso é triste, eu me sinto tão triste.
Passei uma vida inteira tentando disciplinar meus
cabelos, mas como poderia fazer qualquer sentido disciplina-los se há em mim a
rebeldia, o desconforto constante, o pulso incessante do inconformismo?
Fui tão profundamente rejeitada pelo que fui desde
que nasci que ainda me pego, mesmo dentro da elucidação que conquistei, me
odiando, me modificando, tentando encontrar um encaixe entre o que sou e aquilo
que disseram que sou.
Somos tão roubadas de nós mesmas e modificadas que
a reconstrução se torna uma tarefa árdua e angustiante.
Preciso
lembrar e reafirmar a mim mesma o tempo todo que não há nada de errado em
deixar-me ser, em deixar-me fluir.
Meu rosto cru, minha pele com marcas, cicatrizes, pelos,
inconstâncias, vincos e rugas. Minhas gorduras, minha pele flácida, as linhas
das estrias, essas que se desenham sozinhas pela pele sem que ninguém as guie,
sem que ninguém as controle, elas simplesmente vão e percorrem a pele. Todas
essas marcas são representações visíveis, algumas até em alto-relevo, da minha,
da nossa, história. Por que tentam apagar nossas histórias? Porque mulheres não
podem ter historia, não podem ter vivências, não podemos ter experiências,
precisamos ser um livro em branco para que os homens possam nos preencher, nos
escrever, apagar e reescrever, e assim consecutivamente.
Somos desviadas o tempo todo de nosso autocontrole,
temos medo de não estarmos “em branco” e branquificadas (em todos os sentidos)
o suficiente para eles. Estamos rebocando nossas peles, esticando nossos
cabelos, esguiando nossos corpos cansados, equilibrando-nos em saltos, tirando
nossos tão naturais e necessários pelos de mulheres adultas para reforçarmos um
desejo doentio de infantilização e dominação de nossos corpos.
E eu estou morrendo de medo de ser marginalizada
por meus agressores, eu estou morrendo de medo do que - ou quem - me torna ter consciência
de tudo isso, eu estou morrendo de medo de não estar no controle deles, porque eu
sei o risco que corro por ser livre, por não servi-los: eu me torno uma afronta
ao patriarcado.
Mas muito maior do que meu medo é minha raiva, meu inconformismo por não ter
tido a chance de saber o que eu sou, por ter reconhecido o mundo, junto com
meus primeiros passos, como um lugar hostil para mulheres.
Estou em movimento, não posso parar, preciso juntar
as peças perdidas (e me juntar às minhas irmãs perdidas) no tempo e reinventar
aquelas que faltarem. Pois, para além de todas as dificuldades de resistência
para existir como mulher, eu existo como lésbica, e a resistência lésbica, manas,
essa é realmente revolucionária.